FINGINDO SER!
Divar nas redes sociais quer dar a impressão de realidade, verdade e sucesso pleno.
Será mesmo que estamos sempre na melhor festa, nas melhores férias, na melhor viagem, no melhor lazer, na melhor mesa, na melhor companhia, no melhor emprego, no melhor programa fitness, na melhor igreja, na melhor família, no melhor casamento? Será mesmo que temos maior valor representando riqueza com bolsas, roupas, calçados, joias e carros? Será mesmo que o sorriso, empatia, solitude e simpatia estampados revela o que está na mente e na alma? Será mesmo que a fé e santidade professada faz diferença na expressão de vida diária? Será mesmo que descartando relacionamentos estamos resolvidos internamente? Será mesmo que toda essa divação atual revela que verdadeiramente somos tão felizes, santos e bem sucedidos assim?
Essa auto divação é própria do sujeito que tem uma visão norteada pela aparência. Mesmo que não seja uma realidade, o que importa é receber "curtidas/likes" ao se mostrar fragmentos passando a ideia de sentir-se bonito, feliz, amado, espiritual, rico e bem sucedido. Fingir ser, ter é característica da visão de mundo fragmentada da atualidade.
Ao longo da história humana outras visões de mundo também mostram-se em seus fragmentos.
*Na antiguidade e Idade Média, uma visão de mundo mais norteada pela fé mítica (imperava o mito): “eu creio”.
*Na Idade Moderna, na era do Iluminismo, uma visão de mundo mais norteada pela razão (imperava o raciocínio): “eu penso”.
*Na Idade Moderna, na era do Romantismo, uma visão de mundo mais norteada pelo sentimento (imperava a emoção, o sentimento): “eu sinto”.
*Na Idade Pós-moderna, uma visão de mundo mais norteada pelos instintos associados ao prazer (imperava o impulso natural das necessidades, independente da razão, permeado pelo hedonismo, numa busca máxima pelo prazer com o mínimo de interditos possíveis): “eu desejo”.
*Na Modernidade Líquida - conceito cunhado por Zigmunn Bauman (1) - uma visão de mundo mais norteada pela aparência (impera a representação, a teatralização): “eu pareço”.
O fragmento do “parecer”, da modernidade líquida, em que aparentar algo envolve fingir a felicidade, liberdade, sucesso, riqueza, popularidade, beleza e até mesmo a santidade, torna o ser humano cada vez mais frágil, desintegrado e oprimido. Quem aparenta ser o que não é está sempre cheio de segredos e pela exigência de mantê-los escondidos acaba preso em uma máscara opressora. Não consegue experimentar a liberdade de quem não tem nada nada para esconder.
Ao contrário do que aparenta ser, o sujeito que se move fingindo ser o que não é, e ter o que não tem, se constrói sem pontos de apoio e sem sustentação de uma consistência interna. Para Enrique Rojas (2), na pós-modernidade o homem se mostra convertido num ser livre, que se movimenta para todos os lados, não sabe para onde vai, vivencia o tédio, o aborrecimento e uma forma especial de tristeza, em que aflora uma nova paixão, a paixão pelo nada. Cai no relativismo sofrendo uma espécie de melancolia, vivenciando a condição de objeto manipulado, dirigido e tiranizado por estímulos deslumbrantes, mas que não o gratificam e o fazem cada vez mais infeliz.
Com uma expressão de vida assim, com pouca consistência, evoluiu-se para a necessidade de parecer ser e ter algo que efetivamente não se encontra sustentado por raízes mais profundas. Finge-se ter a felicidade, a liberdade, o sucesso, o amor, o sexo, o dinheiro e a espiritualidade que não se tem. Na lacuna discursa-se sobre o que não se é e sobre o que não se tem. Nesse viés podemos encontrar cada vez mais pessoas, que ao mesmo tempo em que fingem ser bem sucedidas, amigas e santas, na verdade podem ser empresários endividados, cônjuges infiéis, pregadores interesseiros, líderes psicopatas, políticos corruptos, educadores opressores, pais mentirosos, amigos abusadores, entre outros. E assim novas patologias sociais são desenvolvidas, naturalizadas e sendo aceitas como "normais".
A lógica que impera é da artificialidade, do imediatismo, do consumo, do levar vantagem, do prazer pelo prazer. A vivência da sociedade atual da modernidade líquida se mostra caracterizada pela liquidez, volatilidade, incerteza e insegurança, em que nada mais é certo, verdadeiro e/ou para sempre, como refere Bauman. Assim, fingi-se uma imagem teatralizada de si enquanto durar e diante de quem interessar representar. E ao voltar para si e se deparar com a dor da realidade da falta de consistência interna, sente-se impulsionado a buscar por novos espaços e bajulações de suas aparências. As redes sociais são um bom palco para isso.
Seguir numa visão de mundo norteada pelo “parecer” sinaliza a continuidade da fragmentação do ser. Melhor seria aproveitarmos bem o que já aprendemos ao longo da história humana, que para “sermos” inteiros, deveríamos evoluir integrando o crer, pensar, sentir, desejar e apenas partilhar e mostrar, seja no virtual ou presencial, a verdade resultante dessa integração. Seguiríamos mais sábios, livres, leves e felizes, sem a escravidão de parecer ser o que não se é, nem de mostrar o que não se tem.
A experiência da felicidade não dependente de "curtidas/likes" nas redes sociais, mas se faz presente quando experimentamos relacionamentos reais, incluindo o transcendente, irmãos e amigos, em que podemos ser absolutamente verdadeiros e, ainda assim, sermos aceitos, perdoados e amados. Essa é a base da elaboração do processo construtivo e criativo que gera a vida e a ressurreição das coisas novas. A auto divação já não imperará mais sobre a conduta diante de quem quer que seja. Podendo-se até partilhar momentos felizes e homenagens à quem amamos, mas não mais com a compulsão das representações de outrora. E se houverem poucas "curtidas/likes", ou mesmo nenhuma, já não definirão mais o estado das sensações internas.
REFERÊNCIAS
(2) Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar.
(1) Rojas, E. O homem moderno. São Paulo: Mandarim, 1996.